A pergunta para o italiano Carlos Ancelotti, técnico da Seleção Brasileira, foi clara. Tinha a intenção de entender algumas das causas do chamado “abismo” entre o futebol brasileiro e o europeu. Carregava, nas entrelinhas, a tese de que o jovem jogador brasileiro precisa ser preparado para atuar no olimpo desse esporte, a Europa. Por mais habilidoso que seja.
Passagens pela Europa, como as de Paulo Henrique Ganso, Gabriel Jesus, Philippe Coutinho e outros jogadores promissores, entristeceram o velho apaixonado pelo futebol brasileiro. Por aquele futebol cuja habilidade se tornou inquestionável e capaz de realizar conquistas históricas. Eles deixaram o Brasil como craques dispostos a encantar o mundo e, mesmo que Coutinho tenha ido bem no Liverpool, no geral tiveram dificuldades de demonstrar todo o talento em gramados europeus. Até Neymar, maior jogador brasileiro na última década, quase ficou relegado em sei início no Barcelona.
A resposta de Ancelotti, portanto, surpreendeu. O experiente treinador deu a entender que essa postura dos clubes europeus busca muito mais preservar o espaço de alguns do continente do que duvidar do talento brasileiro.
“Acredito que o futebolista seja futebolista em qualquer lugar”, afirmou Ancelotti, depois de pergunta feita por Oeste. “O futebol neste momento é global. Não há muita diferença entre um jogador que joga no Campeonato Brasileiro e um jogador que joga nos campeonatos europeus. Os jogadores se adaptam muito bem, e, neste sentido não temos nenhum tipo de problema.”
Alvo dessa “má vontade”europeia, Neymar demorou mais de dois meses para ser titular, desde sua apresentação em junho de 2013 no clube espanhol. Mesmo assim por muito tempo ele foi sempre o substituído em campo.
Só conseguiu reverter essa tendência por ter mantido o foco e calado os críticos com atuações e jogadas típicas dos maiores nomes do futebol. Não foi isso, certamente, em pouco tempo seria emprestado para uma equipe de menor tradição. Até o consagrado Rivaldo, que, diga-se, deu muito certo no Barcelona, foi preterido no Milan pelo técnico Claúdio Ranieri, conterrâneo de Ancelotti.
Esses jogadores foram e são exemplo de como o encanto que eles espalhavam em campos brasileiros pode ser insuficiente quando vão jogar na Espanha, na Itália ou Inglaterra.
Lá não é raro serem obrigados a passar por um período de adaptação que pode durar a eternidade. Trata-se, ao mesmo tempo, de um método profissional do continente, mas também de uma maneira de murchar, de frustrar, de esvaziar o ânimo não só desses jogadores, como de toda atmosfera que os formou no Brasil.
Pelé e Garricha transformaram o futebol brasileiro
A resistência em abrir espaço para os brasileiros é, de certa forma, um meio de atender aos interesses daqueles que sempre buscaram ver a Europa prevalecer sobre os outros continentes e países. Principalmente o brasileiro, detentor de titulos mundiais.
Foi isso que o levou a ser conhecido como o País do futebol. Pois essa postura de deixar muitos craques brasileiros em segundo plano acirra o que o cronista Nelson Rodrigues (1912-1980), antes do primeiro título mundial da Seleção Brasileira, chamava de complexo “de vira-latas”.
“Por complexo de vira-latas, entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca em face do resto do mundo. Em todos os setores e, sobretudo, no futebol”. Foi o que Rodrigues escreveu em crônica da Manchete Esportiva, em 31 de maio de 1958, menos de um mês antes de o Brasil conquistar o título na Suécia.
Ancelotti demonstra ter conhecimento desse conceito, sob o prisma europeu. Há consciência, na Europa, de que esse complexo acabou favorecendo o futebol do continente nesse objetivo de alcançar a primazia, ainda mais nesta era de globalização. O italiano busca utilizar esse conhecimento a seu favor, e voltar a convencer o craque brasileiro sobre seu real potencial.
“O jogador que joga aqui no Brasil está pronto para jogar esses tipos de partidas {de alto nível} internacional,” prosseguiu Ancelotti.
Com a certeza de que esse fenômeno de esvaziamento psicológico já existia, Rodrgues denunciava a postura submissa dos brasileiros que aceitavam esse rótulo de inferiores, sendo, na verdade, superiores tecnicamente. Pelé e Garricha foram essenciais para destruir, pelo menos por um tempo, esse estigma.
E fazer emergir a confiança da geração que se orgulhava desse talento inquestionável e que se sentiu órfã quando o futebol brasileiro não só parou no tempo como voltou para o passado. Do “complexo de vira-latas”.
Hoje, já não existem mais Pelés ou Garrichas. Mas o Brasil continua sendo o país que mais exporta jogadores. Isso já é motivo para acreditar que a Seleção Brasileira pode voltar a ser campeã do mundo.
Ancelotti demonstra acreditar nisso. Ele, pelo menos, conhece o outro lado.